sábado, 17 de abril de 2010

Carta a Macrina


Acompanho há quase um ano, um blog super legal o Vitrola Encantada (vitrolaencantada.blogspot.com) escrito pelo Luís Valcácio lá de Brasília, apesar de focado na música, ele, com sua escrita ao mesmo tempo despojada e refinada, tece comentários sobre os mais variados assuntos, sempre com uma visão própria sobre os mesmos, dentre os muitos que já li, um, me chamou mais ainda a atenção, foi o postado em 13/04/10, sob o título “Carta a Noemia“ onde ele de uma maneira sublime falava do tempo em que, ainda criança, escrevia cartas para uma empregada doméstica, assim como o personagem Dora que Fernanda Montenegro tão bem personificou no excelente filme “Central do Brasil”, pois bem, este post me trouxe recordações que nem o próprio filme me trouxe e consegui resgatar a lembrança já um pouco embaçada de uma época em que eu também tive a minha fase “Dora” de ser, foi quando ajudava a empregada, ou melhor, para ser politicamente correto, a secretária lá de casa, a senão escrever, pelo menos corrigir as cartas que mandava para o namorado. Portanto Luís, influenciado e inspirado no seu post, e como uma homenagem a você e a todas(os) as(os) Doras, é que resolvi também escrever uma carta para Macrina, a minha ex-secretária.

Querida Macrina,

com certeza você deve se lembrar de mim, sim eu sou o terceiro dos irmãos, filhos de Narly e Wilson Calado, que você ajudou a nos criar, o mais novo e mais gordinho dos três. Sei que apesar do longo tempo que separa aquela época para agora, é difícil não se lembrar da maneira dedicada e carinhosa com a qual você nos tratava, um complemento ao profundo amor demonstrado por nossos pais e que até hoje ainda é demonstrado por nossa mãe, acho que você deve estar feliz ao saber que Dona Narly ainda continua firme e forte, como sempre foi, já seu Wilson encurtou o seu caminho e hoje está no “andar de cima” fazendo muitos amigos, como era do seu feitio. Pois bem Macrina, resgato esta lembrança, daquele tempo em que você com seu arranhado português, pedia ajuda para as devidas correções para alguém, como eu, que ainda nem sabia direito qual era a diferença entre predicativo e adjetivo, só sei que naquele quarto, com você expondo os seus amores, me sentia soberano. Esta recordação puxa outras vividas com você, tinha dez, onze anos e me lembro da felicidade que era ir ao teatro do Jornal do Comércio assistir ao programa de auditório “Jorge Chau Show” comandado pela figura ímpar do carismático e performático apresentador Jorge Chau, performático para os padrões da época, início dos anos 70, plena ditadura, anos de chumbo, o pau comendo lá fora, só que para mim isto tudo passava ao largo, o Brasil tinha se sagrado Tri campeão mundial de futebol, o que era uma glória, hoje, estou pouco me lixando se ele vai ser Hexa ou não, tudo o que se passava fora da minha redoma pouco me interessava, um dos poucos fatos que me lembro bem, acho que foi em 1968, quando minha mãe foi nos buscar no colégio Marista, pois as aulas tinham sido suspensas por causa de umas bombas que tinham explodido em algum lugar, tive a mesma sensação que o menino do ótimo “Esperança e Glória” do John Badam, quando na cena final, em plena 2ª Guerra Mundial, ele numa sala de aula, acuado pela aterrorizante professora e prestes a ter que responder oralmente uma pergunta a qual não sabia a resposta e podia ser castigado, toca a sirene de alerta para que todos se dirigissem aos abrigos anti-bombas, e ele ao sair da escola em meio à correria e do alto de sua santa inocência grita a todos os pulmões “Thank you Adolph”.

Pois é, hoje vejo que a coisa foi feia, como diria o mestre Chico “Num tempo página infeliz da nossa história”, muitos dos que lutaram se perderam (Geraldo Vandré, Torquato Neto, Taiguara), outros, mais espertos, conseguiram usar em causa própria os ideais de outrora e hoje se locupletam e mamam nas tetas do governo, trocaram as armas por ótimos charutos cubanos e taças de vinho Romanné Conti ao custo de 5.000,00 dólares a garrafa, com os pés atolados no lamaçal de corrupção que virou Brasília, alguns podem até virar Presidentes, mesmo que para isso seja necessário esquecer os seus ideais, como diria Millor, “então, não era revolução e sim um investimento”.

Bom, Macrina, que papo mais careta, não?, você deve estar pensando, “e quem são todos estes? que eu me lembre nenhum deles se apresentava nas tardes de sábado no Jorge Chau Show”, Ah como eu me sentia recompensado quando você me levava quase que semanalmente ao programa, foi lá, naquele ambiente festivo, quase todo composto de secretárias, que descobri que o povo necessita de muito pouco para ser feliz, mesmo com as adversidades que a vida lhes impunha, e ainda tem gente que com muito não consegue ser feliz.

Jorge Chau era uma espécie de Chacrinha do Recife, na irreverência, pois sempre se apresentava de smoking, lá no seu programa, passavam os mais diversos artistas, todos da linha dita popular, me lembro vagamente de Fernando Mendes por causa do seu cabelo e Waldick Soriano, por causa do seu chapéu, do vozeirão e do sucesso que fazia com as moçoilas, talvez pela sua maneira máscula de ser, e por saber cantar, como ninguém, a paixão e o amor destas pessoas, nisto ele era um mestre, ele cantava o que vivia com o sentimento aflorando a pele. Frequentava também os artistas nacionalmente conhecidos, eram a atração principal a cada sábado, mesmo que estes artistas já estivessem em baixa, como os do segundo escalão da Jovem Guarda, que já definhava em seu sucesso, ver gente como Jerry Adriani, Rosemary, Martinha era uma verdadeira delícia, mas o delírio era grande quando lá aparecia Wanderley Cardoso com o seu “O Bom Rapaz” e principalmente Ronnie Von, a gritaria era geral e todos cantavam (inclusive eu) os versos de “A Praça”, a satisfação daquelas meninas era enorme, talvez fosse a compensação maior pela labuta diária que travavam.

Macrina, talvez tenha surgido daí, este meu interesse pela música, o gosto, foi refinando, elitistamente falando, mas confesso que ainda me arrepio e me emociono ao ouvir este mestre da Paixão que é o Waldick, aqueles gritos de emoção ouvidos no auditório se entranharam nos meus poros.

Foram momentos ótimos, só não entendi Macrina, até hoje, porque você nos deixou tão repentinamente, sem uma explicação, da noite para o dia, você arrumou suas coisas e foi embora, provavelmente encontrar o seu amor, para mim foi duro, afinal você nunca me mandou uma carta.

Um beijo grande, espero que esteja bem feliz.

2 comentários:

  1. Caro Robson, as "Macrinas" e "Noemias" da vida fazem parte da infância de muitos outros garotos e garotas. No meu caso, a Noemia nem era empregada lá em casa. Na verdade, como meu pai era o porteiro do bloco onde ela trabalhava, ela era muito mais uma amigona, uma pessoa da casa, que minha mãe acolhia quando ficava desempregada ou nos momentos de sufoco. Como ela, existiu também a Salomé, a Mazé, a Jésus e tantas outras.
    Mas, belo texto e obrigado, mais uma vez pela citação do Vitrola no seu espaço.

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  2. Caro Luís,
    você não imagina as recordações que resgatei com o seu e com o meu texto. Uma época muito boa, sem preocupações.
    Valeu
    Obrigado.
    Robson

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